terça-feira, 27 de maio de 2008

Elogio do esforço


Vale a pena tornar tudo tortuoso, adornar
com folhas de chumbo a cabeça confusa
e fazer a volta que serpenteia e se afasta
do atalho que chama, cheio de grama.

Se podemos nos bifurcar em dúvidas, errar
o alvo próximo e acertar o inocente difuso na lonjura;
se a discussão, além de inútil, pode ser interminável
quando as partes simplesmente não se escutam.

Tudo é tão fácil! O difícil sou eu que faço —
o máximo cansaço já no início do caminho.


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

Solução pela água


Estão esmurrando a porta
desde o início dos tempos.
Banho infindável
que finda discursos
e impede que eu ouça
mínimos ruídos
a milímetros de mim.
O vapor ritual
mitiga lutas internas
tal como a chuva
acalma a terra
e apruma o homem.
Água, porém, desidrata —
revelou o dermatologista.
Um choque pra quem queria,
no fundo, que o mundo fosse
o fundo de um lago.


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

segunda-feira, 26 de maio de 2008

A aventura


Primeiro
julguei fossem
formigas: mas formigas
sabedoras do risco,
estranhamente íntimas.
Admirável expedição
de homens tontos
nas escarpas,
aranhas teimosas
à cata de algum
prazer incrustado
nas lacerações
fartas em desenhos,
símbolos do perigo
de viver. — Quantos
despencam a cada jornada.
Os que restam
mantêm-se em tamanha
consciência do seu risco
que só lhes resta tomar distância
do eco da morte despenhada.
E sobem.


Do livro O dia múltiplo, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2000

sábado, 17 de maio de 2008

O acidentado


Desprezo — era o seu departamento.
Até sair ileso da capotagem.
Apartamento, comportamento, compartimentos:
quem quase virou reportagem,
quem quase deixou o mundo
arruma coragem pra deixar,
por ora, tudo fora de lugar.
Teve medo, e muito. Escapou
de ficar mudo. Quer mudar.


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

Árido


Lenta memória.
Penso lembrar:
um par de histórias;
algum lugar;

algum luar
secando a rua;
um mar de luas
molhando o beco.

Mais? Que eu me lembre...
uns poucos ecos.
E chuva sempre.
E eu sempre seco.

Do livro O dia múltiplo, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2000

Ameaça


A paciência que se perde e que não volta.
Inocência era verde, madurou, sumiu.
Mortinhos os poetas de que gostas.
Gente sumida, nunca mais, animais
de estimação, silêncios
atrás de portas. Só os teus gritos
— a um tempo longínquos e horrendos —
continuam sendo, encerrados no sótão.
Se eu abrir,
eles voltam.


Do livro O dia múltiplo, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2000

sexta-feira, 16 de maio de 2008

A epidemia

A fome come a doçura do olho
e esfalfa o resto, da testa ao queixo;
deixa tantos sinais de desgosto,
torna todos os rostos iguais.

Tão violento é o crescimento dos famintos
indo e vindo nos labirintos tóxicos
que sinto medo de ser o próximo:
já não reconheço ninguém.


Do livro Pequeno arsenal, de Jorge Emil, Editora Bom Texto, 2004

quinta-feira, 15 de maio de 2008

SERES-CAMADAS,
cascas sobre
cascas sob as quais
calamos o escarcéu.

Entre mim e o outro
jamais faltem véus,
filtro e distância:
para nos aproximarmos.

É mesmo uma missão,
ô vigia de fronteira,
instaurar a censura
entre o só e o social.

Pois dentro da pele,
ele — o louco
o tempo todo
na tempestade.


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Ana Beatriz Felícia


‘Eu sou feliz o dia todo, todo dia.
Me canso! Nem criança é assim.
Deve ser um tipo raro de epilepsia.’

Querida, você avalia
quantos avaros dariam a vida
pra sofrer essa avaria?


Do livro O olho itinerante, de Jorge Emil, Editora Record, 2012